Alexandre de Araújo Pereira
Psiquiatra, professor do Curso de Medicina da Unifenas/BH, doutor em Medicina pela UFMG.
Estive alguns dias ausente das redes sociais e senti-me na obrigação de compartilhar uma reflexão sobre a crescente criação de novos diagnósticos em psiquiatria – fenômeno cada vez mais comum – e sua relação com a educação. Curiosamente, somos biologicamente muito semelhantes aos nossos ancestrais de 100 mil anos atrás e, ainda assim, parte da ciência insiste em afirmar que a maioria dos transtornos mentais tem origem exclusivamente no cérebro. Será que, em tempos tão remotos, já haveria justificativa para tantos diagnósticos? Teria o corpo e o cérebro humanos mudado tanto assim?
Até há pouco tempo, os diagnósticos psiquiátricos eram vistos como máculas na reputação pessoal. Atualmente, vivemos o movimento inverso: o diagnóstico virou uma espécie de marca, valorizada e utilizada — muitas vezes de forma conveniente ou distorcida — por pacientes, familiares, indústria farmacêutica e até pela classe política. Termos como depressão, burnout, TDAH, TEA (com altas habilidades), transtorno bipolar, entre outros, estão cada vez mais presentes no cotidiano e são empregados como desculpa, justificativa ou senha de acesso para quase tudo. A lógica parece simples: se meu cérebro está doente, não tenho responsabilidade sobre minhas ações, e cabe à sociedade compreender-me e incluir-me, a qualquer custo.
Talvez, em tempos tão imprevisíveis e exigentes como os atuais, as pessoas estejam buscando diagnósticos como forma de proteção. Dentro dessa lógica, muitos parecem abdicar da responsabilidade e da autonomia, transferindo-as para terceiros ou, ainda pior, para as instituições ou para o Estado. Em alguns casos, ter um diagnóstico tornou-se um passaporte para a inclusão compulsória, amparada por marcos legais como as Leis nº 13.146/2015 e nº 13.409/2016.
Um exemplo prático: em edital recente de uma renomada universidade brasileira, que selecionava supervisores para médicos atuantes no SUS, foi incluída a possibilidade de inscrição de candidatos com deficiência mental, incluindo deficiência intelectual. Qual seria a motivação para tal inclusão? Obrigação legal? Princípio de não discriminação? Em nome de que passamos a incluir, em processos seletivos, pessoas claramente inaptas para determinadas funções?
Não incluir determinados diagnósticos num processo como esse não configura discriminação. Toda atividade profissional exige competências mínimas. Caso essas exigências deixem de ser observadas, em nome de uma obrigação abstrata de inclusão total, corremos o risco de criar aberrações sociais. Inverteremos perversamente a lógica da inclusão: estaremos incluindo quem não pode ser incluído.
Outro exemplo: certa vez, atendi uma mãe que trouxe a filha, com pouco mais de vinte anos, ao consultório. A jovem apresentava evidente atraso intelectual leve, mas havia sido admitida em um curso superior da área da saúde. Estava angustiada, ansiosa, e com sérias dificuldades acadêmicas. O que fazer? A mãe, legitimamente, desejava ver a filha prosperar, mas a que custo? A chance de conclusão do curso era pequena, e o custo psíquico, enorme. Sugeri uma mudança de perspectiva: talvez uma formação técnica de curta duração fosse mais adequada, considerando suas limitações. Assim foi feito. Não se trata aqui de descartar ou deixar de apostar na pessoa, mas de considerar as limitações identificadas e investir tempo e vitalidade para uma inclusão possível, não idealizada.
Mas a pergunta que persiste é: como essa aluna concluiu o ensino médio? Parece que as escolas se sentem obrigadas a diplomar os estudantes, mesmo que não tenham desenvolvido os conhecimentos mínimos para acesso ao ensino superior. Em situação semelhante, os pais de um ex-cliente meu processaram a escola porque, embora ele tivesse sido promovido para o último ano do ensino médio, a instituição hesitava em conceder o diploma, alegando que ele não possuía os conhecimentos necessários. Teria a escola sido desonesta ao permitir seu avanço e, depois, negar o diploma? A certificação escolar, indicando o nível de aprendizagem realmente alcançado, não teria sido mais justa para todos? A Justiça concedeu o diploma.
Como docente universitário em uma escola médica, também enfrento dilemas semelhantes. Não acredito que, para ser médico, seja necessário ser perfeito — longe disso. Aliás, a própria escolha pela medicina pode, em alguns casos, ser sintomática. Contudo, a abertura irrestrita de vagas trouxe desafios imensos à formação médica. Não é justo, ético — tampouco legal — impedir o acesso ao curso por conta de um diagnóstico psiquiátrico prévio. Mas o curso é exigente, demanda organização, resiliência e capacidade emocional. Quem convive com uma doença psiquiátrica grave, e não realiza tratamento adequado, enfrentará desafios ainda maiores — como ressalta Clare Gerada, médica britânica, em sua obra Por trás do jaleco branco – médicos, suas mentes e saúde mental.
Alguns alunos e suas famílias parecem ignorar esses aspectos ao optarem por uma escola médica, mesmo diante de históricos acadêmicos frágeis ou dificuldades emocionais significativas desde a infância. Diferentemente de 15 ou 20 anos atrás, o aumento de vagas permite a entrada de candidatos com menor preparo acadêmico e emocional. Mas ser aprovado no vestibular não é garantia de sucesso. Alunos com dificuldades precisarão de mais suporte: da instituição, da família e dos colegas. Muitos concluirão o curso em prazos estendidos; outros, infelizmente, desistirão — por adoecimento mental ou limitações financeiras. O diagnóstico não deve ser uma justificativa automática para a progressão acadêmica. O aluno precisa avançar com base em sua capacidade de superar os desafios. Para isso, pode (e deve) contar com apoio psicopedagógico, monitoria, escuta acadêmica, planejamento curricular individualizado e suporte psicológico e/ou psiquiátrico — recursos que devem estar disponíveis em todas as instituições universitárias.
Infelizmente, alguns diagnósticos menos graves têm sido invocados de forma oportunista. Não pretendo generalizar, mas é crescente o número de laudos neuropsicológicos e psiquiátricos — especialmente relacionados a TDAH e TEA nível 1 — utilizados para justificar baixo rendimento acadêmico ou dificuldades emocionais, organizacionais e sociais, exigindo a adaptação do currículo às necessidades individuais.
Não me refiro às adaptações necessárias para pessoas com deficiências físicas importantes, mas ao uso inadequado de diagnósticos psiquiátricos para obter facilidades — como alteração de métodos avaliativos ou de cenários de prática clínica — sem justificativa clara. Alunos médicos, com dificuldades no avanço curricular, em um contexto de extrema competitividade, têm utilizado o diagnóstico psiquiátrico como uma justificativa para conseguirem facilidades durante a sua formação e isso não deve ter acolhimento pedagógico. Não se deve “carregar um diagnóstico no pescoço”, para pleitear facilidades desnecessárias. É preciso dialogar com maturidade e empatia com os alunos (e, quando necessário, com suas famílias), respeitando suas limitações e subjetividades, mas deixando claro que a responsabilidade pelo aprendizado é deles. A função da escola é apoiar, não substituir.
A inclusão pela educação e pelo trabalho, tão bem defendida pela Reforma Psiquiátrica brasileira — especialmente nas décadas de 1990 e 2000 —, valorizava as singularidades de cada indivíduo, suas potências e limitações. Apostava-se na construção de vínculos sociais possíveis, tendo como base o princípio da equidade. Era uma aposta no sujeito, não uma garantia de resultados.
Talvez devêssemos revisitar as raízes desse movimento e não cair na armadilha de acreditar que o diagnóstico deve excluir a pessoa de suas escolhas e responsabilidades.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF: Presidência da República, 2015.
BRASIL Lei nº 13.409, de 28 de dezembro de 2016. Altera a lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, para dispor sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnico de nível médio e superior das instituições federais de ensino. Diário Oficial da União, Brasília, 29 de dezembro de 2016
GERADA, Clare (Org.). Por trás do jaleco branco: médicos, suas mentes e saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2022.
Foto: Acervo Pessoal | Divulgação